...“Deputado (Nilson Leitão). O que eu quero falar com o senhor é o seguinte: eu quero que o senhor ouça com o coração, pois o que eu vou falar é verdadeiro, pois eu quero que o senhor sinta como a gente vivia naquela época do DDT. Nós respiramos o DDT, almoçamos o DDT e na hora de dormir, dormíamos com o DDT”...
Assim começou a fala do “seo” Gumercindo...
Mas ele diz que também ficou emocionado quando uma mulher chegou para ele e lhe disse: “Moço, eu não sou do quadro de servidores, mas o que o senhor falou aí, o meu pai sempre falava e eu achava que era mentira. Mas quando o senhor disse que quem acreditasse na sua palavra era para se levantar, eu me levantei também. Senti que o senhor falou a verdade, fui obrigada a me levantar”.
E assim foi. A maioria do público presente se levantou, quase um protesto silencioso, seguido de muitos aplausos.
“Inseto sem osso”?
Naquela época, ele ia para campo e nunca recebera instrução sobre o perigo de que era o inseticida. O superior dele sempre dizia que o inseticida não faria mal à saúde humana, só para os insetos sem ossos (como se algum inseto tivesse). Borrifando casas sem material de proteção, nunca tinha escutado o que era um EPI (equipamento de proteção individual). E tudo começou em outubro de 1987.
“Eu ia pro campo e era proibido levar duas bolsas, somente uma, porque não cabia tudo na camionete. Nós éramos em seis, quatro no banco de trás e dois na frente. A bolsa ia no colo. Na pequena carroceria iam os inseticidas, nossa comida e mais o combustível para a viatura. Eu atuava na região norte de Mato Grosso. Peguei 13 malárias. Na primeira quase morri”, relata Gumercindo.
Quando estava debilitado por causa da doença, ficava no acampamento. Pegava o balde onde preparava o DDT e ia no riacho mais perto buscar água para fazer comida. Não tinha como carregar outra vasilha. Passava uma água no balde, já que não fazia mal para “inseto com osso” e preparava o rancho.
“A nossa comida ficava junto com as caixas de inseticidas e na hora de dormir não podia deixar o veneno no veículo, pois na Amazônia chove muito e o veneno tinha que dormir junto, pois não podia molhar. A gente dormia no chão, amontoados uns com outros. Fazia muito frio e nós colocávamos as caixas empilhadas como se fossem paredes para evitar o vento. No dia seguinte começava tudo de novo. Colocava o inseticida no veiculo e saiba Deus aonde a gente ia pousar no dia seguinte. E isso aconteceu por muitos e muitos anos”, relata.
Com 23 anos já atuava na Sucam. E enterrou vários companheiros seus, vítimas do veneno.
"Aquilo era trabalho escravo"
Gumercindo relata ainda que não podia levar a mulher e filhos para o município que estava trabalhando. Dormia mais próximo ao inseticida do que com a própria família. “Tanto é que se você for fazer um levantamento 90% dos nossos colegas perderam a família. Você só ia vê-las 20, 30 dias depois e tinha apenas um dia para receber o salário e outro para voltar”.
“Hoje eu sei que aquilo era trabalho escravo. Você não tinha equipamentos de proteção, só um capacete e o uniforme caque. Era uma vida muito sofrida. Trabalho no Dsei (Distrito Sanitário Indígena) de Colíder, sou guarda de endemias. Utilizo o Cipermetrina (inseticida piretróide que age por contato e ingestão nos alvos biológicos), que também faz mal para a saúde humana. Só que uso máscara, luvas, óculos... coisas que não tinha naquela época”, diz.
DDT, a herança maldita
O agente de endemias conta que têm problemas no estômago, rins, retirou a vesícula e que não pode mais suportar peso por problema de desvio de coluna por carregar as bombas pulverizadoras inadequadamente. “Hoje o que nós herdamos foi justamente isso. Temos colegas em cadeira de roda, outros passaram por cirurgias e outros faleceram. Um dos problemas sérios que o DDT nos causou foi a perda da memória e o estresse. Por qualquer motivo você se irrita. Se você pegar 100 pessoas que trabalharam naquela época e um psicólogo para avaliação, você vai verificar que 99% têm problemas de alteração comportamental”, revela.
Há relatos em que o intoxicado espanca a mulher. Quando conversam mudam de assunto 3, 4 vezes e depois voltam ao assunto. Filhos que queriam abandonar o pai por causa do estresse e mulheres que largaram o marido porque chegava em casa nervoso.
O “pum” da discórdia
Seria cômico se não fosse real. “Após dias de trabalho, quando chegava em casa, minha esposa, grávida, começava vomitar. Pensei que era enjoo da gravidez, mas ela falou que não aguentava o cheiro da minha roupa. E quando soltava um “pum” então. Minha mulher falava que tinha cheiro de DDT. Eu achava que era brincadeira, mas era a pura verdade. Até mesmo quando suava mandava tomar banho logo, pois segundo ela, eu exalava o cheiro do veneno,” ironiza.
“Nós fomos guerreiros”
Para Gumercindo, os 2.500 reais de pensão proposto não é um pagamento e sim um reconhecimento e que a União reconheça que eles foram guerreiros, foram soldados, que sofreram muito, que lutaram e entregaram a municipalização com o dever cumprido.
“É só isso que a gente quer, porque reparo isso não tem mais. Temos a consciência disso, de que mais tarde as sequelas virão e temos que estar preparados. Nós demos a vida pela Amazônia . Hoje o que nós temos é o agradecimento dos moradores, dos indígenas, dos garimpeiros. Quando a gente veste o uniforme caque, o reconhecimento é muito grande, eles têm respeito. Falam assim: nossa! é o povo da Sucam".
- Aí eu falo comigo. Que trabalho brilhante que fazemos!
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